NOSSA HISTÓRIA
Doçura é traço de família. E, no Rio, nenhuma família vence nesse quesito aquela que atende pelos sobrenomes germânicos Deichmann-Geller. Evelyn Deichmann, a mãe, cuida da Confeitaria Kurt, fundada por seu tio Kurt no Leblon há exatamente sessenta anos. Os filhos, Alan e Dany Geller, comandam desde 1994 a The Bakers, misto de padaria, confeitaria, restaurante e delicatessen. Para o júri de gastronomia de Veja Rio, a Kurt produz as melhores tortas da cidade. A The Bakers, os melhores doces.
Laços tão próximos não impedem que mãe e filhos mantenham estilos bem diferentes. A confeitaria de Evelyn é pequena e aconchegante: lembra a casinha de doces de João e Maria, ou melhor, de Hans e Gretel, pois o sotaque aqui é decididamente germânico. Nas vitrines há apfelstrudel, sacher, streusel. “Kurt é sinônimo de doces europeus, produzidos artesanalmente, com ingredientes fresquíssimos”, discorre Evelyn.
A The Bakers, dos jovens Geller, parece uma daquelas délis nova-iorquinas. Lá tem brownie, cheese cake e cappuccino cake. “Buscamos estar atualizados, usando ingredientes que estão na moda, pensando sempre em novidades”, diz Alan, 30 anos. A The Bakers já tem três lojas – Copacabana, Centro e BarraShopping, todas equipadas com cozinha industrial – e inaugura uma quarta filial em Ipanema, nesta sexta-feira (20). Para o ano que vem, os manos pensam em licenciar franquias.
O interesse de Evelyn, Alan e Dany pela gastronomia começou no mesmo lugar: a cozinha da confeitaria Kurt, nos tempos em que o fundador, Kurt Deichmann, mandava e desmandava na acanhada lojinha estabelecida inicialmente na Avenida Ataulfo de Paiva. “Passei a infância e a adolescência vendo meu tio trabalhar. Ele tratava a mim e a minha irmã como filhas”, lembra Evelyn. Kurt veio da Alemanha em 1939, a convite do irmão, pai de Evelyn, que já morava no país desde 1927. Abriu a primeira loja em 1942, no ainda ermo Leblon, vendendo frios, pão preto, salsichões, produtos que faziam a alegria da colônia alemã.
Na loja, Kurt fazia questão de manter suas peculiaridades. Leite condensado e doce de leite não passavam pela porta de jeito nenhum. Se um desavisado entrasse e pedisse inocentemente um brigadeiro ou um quindim, corria o risco de ouvir desaforos ou, caso o proprietário estivesse de bom humor, ser encaminhado à padaria mais próxima. “O que ele costumava dizer é que esses doces podiam ser encontrados em qualquer lugar. Os dele não”, conta Evelyn. Outro tabu dizia respeito aos refrigerantes. Enquanto Kurt viveu, sua confeitaria ofereceu apenas água para acompanhar os doces, para não estragar o paladar. “A gente comprava croissants cedinho e levava para a padaria, para comer com o café”, recorda Vera. Kurt abria a loja antes das 7 da manhã e só fechava às 7 da noite. Se alguém chegasse um pouco antes disso, ele ficava impaciente, acendia e apagava a luz para repelir o retardatário. Detestava embalar os produtos para viagem. “Ficava resmungando que queria ter um martelo para deixar tudo amassado”, revela Alan Geller.
Alan, o caçula de Evelyn, teve uma relação muito estreita com o tio-avô. “Ele era o queridinho do Kurt”, diz Evelyn. Fascinado pelo trabalho na cozinha, Alan costumava driblar a mãe e matar aulas de inglês para ir à confeitaria. “Eu ficava cortando morangos e surrupiando colheradas de chantilly”, conta ele. Mas, antes de entrarem de corpo e alma na arte de tornar mais doce a vida das formiguinhas cariocas, mãe e filhos passaram por outros tipos de negócio. Evelyn teve uma confecção. Tornou-se sócia e braço direito de Kurt só em 1987. Dany fez engenharia de produção e foi trabalhar no Banco Icatu. Alan estudou administração de empresas, quase entrou também para o ramo das confecções, antes de descobrir sua verdadeira vocação.
Quando o tio viajava, Alan aproveitava para inventar suas próprias receitas. Uma vez, apareceu com um pão-de-ló de chocolate recheado com morangos e creme de chantilly. “Os clientes adoraram. Mas, quando Kurt voltou, ele disse que não tinha cabimento essa história de misturar chocolate e morango, que não era o estilo dele”, lembra Alan. “Às vezes dava uma frustração. Na cabeça dele, devia ser difícil aceitar que um moleque como eu inventasse novidade.” Foi aí que ele percebeu que precisava construir seu próprio caminho. Junto com o irmão Dany, Alan foi definindo o perfil de seu projeto de loja de comidinhas. Entre o planejamento e a abertura da The Bakers Copacabana, em 1994, passaram-se dois anos. Alan tinha 20 anos e Dani, 22. Ambos tinham cara de bebê. “Os fornecedores olhavam desconfiados para a gente”, lembra Dany. Não por coincidência, uma das primeiras criações da The Bakers foi a ecstasy, torta feita com pão-de-ló de chocolate, morangos e creme de chantilly, um tremendo campeão de vendas.
A The Bakers faz sucesso desde a inauguração, uma semana antes do Natal de 1994. “A gente tinha medo de que não aparecesse nenhum freguês. O que houve foi justamente o oposto. Não havia doce nem torta que desse vazão à procura”, lembra Alan. Hoje, eles produzem habitualmente 480 tortas por semana, chegando a piques de 248 por dia nas festas de fim de ano. A primeira filial, no Centro, foi aberta em 1998. Para atender a clientela da hora do almoço, além de pães, doces, tortas e salgados, a casa passou a servir também sanduíches e saladas. No mezanino da loja da Rua do Ouvidor, instalaram um restaurante que serve almoço e chá. Há dois anos, foi a vez da filial BarraShopping. A quarta loja, em Ipanema, vai funcionar no 2º andar do Shopping Cidade de Ipanema, na Rua Visconde de Pirajá, seguindo a mesma fórmula de doces, salgados e refeições ligeiras. “O que mais chama a atenção na The Bakers é a inventividade”, destaca Marcelo Dantas, integrante do júri de gastronomia de Veja Rio. “Toda vez que eu vou lá há uma novidade, uma surpresa. E, como acontece no Kurt, os doces não são excessivamente açucarados, pecado que afeta a maior parte das docerias da cidade.”
Dany e Alan apostaram na inovação e pagam o preço por isso até hoje. Muitos de seus lançamentos acabaram sendo copiados sem nenhuma cerimônia. Ainda nos primórdios da The Bakers, deram partida à moda da cheese cake, que virou febre a partir de meados dos anos 90. A torta teia de aranha, de brigadeiro, decorada com um aracnídeo de chocolate, costuma aparecer na época do Halloween em outras confeitarias. Mas o mais engraçado foi a invenção do alänish, um trocadilho com o próprio nome do caçula, que batizou um pãozinho doce feito para fazer dupla com o danish, de passas. “Já que nós nos chamamos Dani e Alan, achei que ia ser engraçado além do danish ter também o alänish, com trema, para ficar com ar de palavra estrangeira”, conta. “Duas semanas depois, para minha surpresa, encontrei alänishes sendo vendidos pela cidade inteira”, diz Alan. Cheese cake, ecstasy e crock – uma verdadeira orgia de chocolate em três camadas – são os best-sellers da rede. Os irmãos vivem cercados de delícias, mas Dani garante que já enjoou. “Não agüento mais doces, especialmente os da The Bakers”, esnoba. Alan não sofre da mesma doença. “Não consigo resistir a um brownie”, admite.
No Leblon, Evelyn continuou a tradição iniciada pelo tio. Tomou a frente do negócio no fim da década de 90, quando ele precisou se afastar por causa do mal de Alzheimer. Kurt morreu em 2000, depois de quatro anos de enfermidade. Evelyn vem fazendo sutis adaptações na confeitaria. Refrigerantes continuam proscritos, mas agora é servido um café expresso e até – heresia das heresias – mate. Leite condensado também não faz parte dos ingredientes usados diariamente, mas é possível encomendar com antecedência uma torta de brigadeiros. Evelyn instalou três mesinhas onde se pode sentar com um café e um strudel. “Kurt não queria. Ele dizia que se a gente pusesse mesas ia ficar igual a Luxemburgo, cheio de velhinhas tomando café a tarde toda sem consumir mais nada”, lembra. Ela criou uma nova linha de produtos dietéticos, sem açúcar.
Muitas coisas não mudam. Até hoje, a loja continua sem ter computador. Os pedidos de entrega – outra novidade – são anotados em papeizinhos. Se depender de Evelyn, a confeitaria nunca se renderá aos salgados. Ela bem que pensou em mudar a apresentação de algumas tortas, como a clássica de damasco, carro-chefe da casa até hoje, com a média de cinqüenta fatias vendidas diariamente. “O visual dela é cafonérrimo”, opina. Desistiu quando a torta foi parar no horário nobre da TV, numa cena da novela das 8. “Não dizia o nome da confeitaria nem nada, mas, no dia seguinte, foi uma loucura. Todo mundo queria comprar. Só de olhar, as pessoas já sabem de onde é a torta. Não dá para mudar”, diz ela. A tradição de Kurt e o espírito inventivo dos Baker Boys se completam que é uma delícia.